Fizemos uma lista de filmes internacionais, agora fazemos outra para o cinema português. Foi um ano de excelente produção nacional e, por isso, deu trabalho escolher só cinco. Mas teve que ser. Ei-los.
SNU
Snu, escrito e realizado por Patrícia Sequeira, conta a polémica relação entre Ebba Merete Seidenfade — Snu — a dinamarquesa que veio para Portugal e foi fundadora das publicações Dom Quixote, e Francisco Sá Carneiro, político do PPD-PSD e primeiro-ministro.
Foi, aliás, a poetisa Natália Correia que os apresentou, tendo-se referido à relação como “a maior revolução em Portugal após o 25 de Abril”. Expressão quase tão conhecida como a do próprio Sá Carneiro, que avisou os colegas de partido das suas intenções: “se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo”.
No filme, Snu, interpretada por Inês Castel-Branco, e Francisco Sá Carneiro, representado por Pedro Almendra, conhecem-se em 1976: ambos casados e com filhos de outras uniões. Apaixonam-se e decidem assumir o amor numa época de transição política e social, abalando as convenções nacionais. Morrem tragicamente em 1980, quando o avião em que seguiam despenhou-se em Camarate, tornando-se numa das maiores histórias de amor do século XX.
Patrícia Sequeira intitulou o filme de Snu por não retratar apenas a história de amor, mas também para dar maior foco a uma figura muitas vezes reduzida ao papel de amante do primeiro-ministro. Para fazer esta película, além dos livros que leu, a realizadora contou com a ajuda de uma historiadora para a investigação e validação dos factos.
Snu retrata a beleza dos anos 70, com um forte cuidado estético no guarda roupa e décor, tendo Sequeira recorrido a locais que conservam a estética da época: Hotel Ritz e o LNEC, ambos em Lisboa.
DIAMANTINO
Esta comédia dramática, realizada por Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, conta a história de um ícone do futebol mundial, Diamantino, cuja carreira acaba repentinamente. À procura de um novo objectivo para a sua vida, Diamantino — interpretado por Carloto Cotta — começa a reflectir sobre assuntos que nunca tinha pensado, entre eles a crise dos refugiados, manipulação genética e busca pela perfeição.
Existem óbvias referências a Cristiano Ronaldo e sobre o que uma super estrela pode fazer pelo seu país, mas o filme não se esgota aí: a película mostra, por exemplo, uma conversa entre o futebolista e Manuela Moura Guedes, baseada numa entrevista real feita por Oprah a Lance Armstrong, em que o protagonista afirma que aquele é o local para dizer todas as verdades. Este momento traz uma dose de realidade e, paradoxalmente, de surrealismo. É das cenas que mais satiriza a nossa cultura actual, onde a apresentadora de televisão tenta provocar o choro a Diamantino.
Ao elenco juntam-se Cléo Tavares, Anabela Moreira, Margarida Moreira, Filipe Vargas, Joana Barrios, Maria Leite, Carla Maciel e Manuela Moura Guedes. Por fim, a consagração internacional: Diamantino foi vencedor do Grande Prémio da Semana da Crítica do Festival de Cinema de Cannes. Notável.
VARIAÇÕES
Variações, de João Maia e produzido pela David & Golias, chegou às salas de cinema em Agosto. Fala sobre a vida de António Ribeiro, barbeiro excêntrico, músico sem formação musical, inspirado pelo fado de Amália Rodrigues e figura lisboeta de proa no final dos anos 70, que persegue o sonho de se tornar cantor e compositor. Um filme que esteve em pré-produção dez anos e que se foca no processo de transformação de António Variações.
Sérgio Prata, que interpreta o artista, foi o primeiro actor do primeiro dia de castings e deixou quem se seguiu em maus lençóis, apesar de ser um actor com apenas algumas passagens pelo teatro. A sua performance foi notável e, claro, ficou com o papel. O elenco conta ainda com Filipe Duarte, José Raposo, Victoria Guerra, Filipe Albuquerque, Nuno Casanovas, Madalena Brandão e Teresa Madruga.
Variações morreu em 1984 com apenas um disco editado, “Anjo da Guarda”, e um segundo a caminho, “Dar e Receber”. Com o filme, surgiu a banda Variações que tocou no NOS Alive e ainda uma canção inédita: “Quero Dar Nas Vistas”. Tema que aparece várias vezes nas cassetes originais de António e surge no filme durante uma jam session.
Patrícia Dória, responsável pelo guarda roupa de Variações, recolheu imagens públicas, leu a biografia de Manuela Gonzaga (António Variações, Entre Braga e Nova Iorque) e falou com pessoas que o conheceram, como Rosa Maria, que lhe mostrou uma grande quantidade de fotos de índole particular, a partir das quais Patrícia pôde reconstruir a imagem de todo o universo Variações.
A HERDADE
A Herdade teve realização de Tiago Guedes e contou com o argumento de Rui Cardoso Martins. Faz uma viagem profunda pelo Portugal rural do Estado Novo, pós-revolução e contemporâneo.
João Fernandes, interpretado por um enorme Albano Jerónimo, é um homem realizado na acção: poderoso proprietário rural ribatejano, autoritário e mulherengo, que pretende fazer prosperar o seu pequeno império enquanto falha nos sentimentos e torna-se letal no seu mundo íntimo, sendo os seus filhos e a mulher Leonor — Sandra Faleiro — os que mais sofrem com aquela postura. Sandra Faleiro foi, aliás, nomeada para Melhor Actriz no Festival de Cinema de Veneza, estando assim ao lado de nomes como Meryl Streep ou Juliette Binoche.
A Herdade teve estreia mundial no festival de cinema daquela cidade italiana, no qual Tiago Guedes venceu o Prémio Bisato d’Oro para Melhor Realização. Após a distinção, o filme seguiu para o Festival de Toronto TIFF, secção Special Presentations, onde pela primeira vez um filme português foi seleccionado. Esteve ainda na lista das 93 películas anunciadas para concorrer ao Óscar de Melhor Filme Internacional na 92.ª edição dos Óscares. Um ano em grande para “A Herdade”.
TRISTEZA E ALEGRIA NA VIDA DAS GIRAFAS
Tristeza e Alegria na Vida das Girafas de Tiago Guedes estreou no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, México, e é uma adaptação da peça de teatro homónima, do encenador e produtor Tiago Rodrigues que fala sobre a dor de crescimento de uma criança num país em crise.
Com banda sonora original de Manel Cruz — vocalista dos Ornatos Violeta — o filme conta a história de uma menina de 10 anos, alta demais para a sua idade, a que a mãe chamava Girafa, e que atravessa a cidade de Lisboa com a ajuda de um urso de peluche à procura do Discovery Channel.
Maria Abreu que faz o papel de Girafa e Tonan Quito, que interpreta o urso revoltado, sozinho e deprimido Judy Garland, são os protagonistas. O realizador quis ainda manter algum elenco da peça de teatro original e dos quatro actores que subiram ao palco, dois (Miguel Borges e Tonan Quito) integram o filme. Gonçalo Waddington, Miguel Guilherme, Romeu Runa e Tiago Rodrigues completam o rol de participantes.
“Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” foi filmado em 2017, tendo estreado dois anos depois. Demorou quase oito anos a ser gravado devido à falta de financiamento. Conseguida a verba, as filmagens tiveram a duração de apenas três semanas.